Provimento derivado: a polêmica envolvendo a transformação de empregos públicos em cargos públicos

Provimento derivado: a polêmica envolvendo a transformação de empregos públicos em cargos públicos

 

Sabe-se que o Supremo Tribunal Federal, por meio da Súmula n° 685, pacificou entendimento no sentido da impossibilidade de provimento originário em cargo ou emprego público, assim como o provimento derivado por via da ascensão ou transferência (que são formas de provimento em carreira diversa daquela para a qual o servidor público ingressou por concurso), sem a prévia aprovação em concurso público, sob pena de afronta ao art. 37, inciso II, da CR/88.

É que, após o advento da Constituição da República de 1988, não há mais que indagar se as constituições estaduais deveriam ou não adotar a imposição de concurso público para o provimento de cargos públicos ou se poderiam contornar tal exigência, prescrevendo outras formas de investidura estranhas ao texto constitucional.

A proibição de se promover cargos públicos sem concurso torna-se mais rigorosa, pois a necessidade de concurso não é só para a primeira investidura, como ocorria no ordenamento constitucional anterior, mas também para as demais investiduras eventualmente sobrevindas no decorrer da vida profissional do funcionário público, para cargo diferente daquele no qual já foi investido, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão.

Parece evidente, assim, que muitas formas de movimentação de servidores dentro do serviço público foram eliminadas com a promulgação da CRFB/88, que consagrou explicitamente, no art. 37, inciso II, a orientação restritiva que já vinha sendo adotada pela doutrina e pela jurisprudência. Assim sendo, o STF, no julgamento da ADI n° 231-RJ, relatada pelo Min. Moreira Alves, fixou o seguinte entendimento:

  1. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ASCENSÃO OU ACESSO, TRANSFERÊNCIA E APROVEITAMENTO NO TOCANTE A CARGOS OU EMPREGOS PÚBLICOS. O critério do mérito aferível por concurso público de provas ou de provas e títulos e, no atual sistema constitucional, ressalvados os cargos em comissão declarados em lei de livre nomeação e exoneração, indispensável para cargo ou emprego público isolado ou em carreira. Para o isolado, em qualquer hipótese; para o em carreira, para o ingresso nela, que só se fara na classe inicial e pelo concurso público de provas ou de provas títulos, não o sendo, porem, para os cargos subsequentes que nela se escalonam até o final dela, pois, para estes, a investidura se fara pela forma de provimento que e a “promoção”. Estão, pois, banidas das formas de investidura admitidas pela constituição a ascensão e a transferência, que são formas de ingresso em carreira diversa daquela para a qual o servidor público ingressou por concurso, e que não são, por isso mesmo, ínsitas ao sistema de provimento em carreira, ao contrario do que sucede com a promoção, sem a qual obviamente não haverá carreira, mas, sim, uma sucessão ascendente de cargos isolados. – o inciso II do artigo 37 da Constituição Federal também não permite o “aproveitamento”, uma vez que, nesse caso, há igualmente o ingresso em outra carreira sem o concurso exigido pelo mencionado dispositivo. Ação direta de inconstitucionalidade que se julga procedente para declarar inconstitucionais os artigos 77 e 80 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias do Estado do Rio de Janeiro.

Portanto, têm sido consideradas inconstitucionais as leis que transformam em estatutários e, pois, titulares de cargos efetivos, servidores celetistas contratados sem concurso público. Igualmente inconstitucionais são os casos em que a Administração Pública cria nova carreira com novos cargos (reestruturação funcional) e simplesmente pretende preenche-los com servidores trabalhistas ou mesmo com estatutários de carreira diversa[1].

Neste diapasão, é possível afirmar que toda lei que transforma emprego em cargo público deve ser tida como inconstitucional? Imagine, por ex., que determinada lei transformou uma Empresa Pública em Autarquia, alterando, por sua vez, o regime jurídico de pessoal (antes celetista, agora estatutário). Tal reestruturação funcional deve ser considerada inconstitucional?

Para responder o questionamento, recorda-se da pertinente lição de Edmir Netto de Araújo, que assevera que a transformação não implica em forma de provimento derivado de cargos públicos, pois o que acontece é a alteração (de denominação, atribuições, regime jurídico e sistema remuneratório e de previdência) do cargo já existente e provido para outro cargo (ou emprego ou função já preenchidas em outros, ou em cargo estatutários) efetivo ou mesmo em comissão[2].

Assim, não haveria violação à regra do art. 37, inciso II, da CRFB/88, em consequência da transformação de emprego em cargo público ocupado e a ser ocupado por empregados públicos que ingressaram no serviço público por intermédio de concurso. Em outras palavras, a mudança na natureza jurídica da entidade, por meio de lei, não importa em violação ao comando constitucional, desde que verificada sua identidade substancial (por ex., equivalência remuneratória e de atribuições, requisitos do concurso público etc).

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI n° 2713-DF, de relatoria da Min. Ellen Gracie, julgou improcedente o pedido declaratório de inconstitucionalidade do art. 11 e parágrafos da Medida Provisória n° 43/2002, convertida na Lei n° 10.549/02[3], que transformou os cargos de Assistente Jurídico da Advocacia-Geral da União em cargos de Advogado da União. No caso, o Tribunal rejeitou a alegação de violação ao princípio do concurso público (art. 37, inciso II, da CRFB/88), uma vez que, a partir da análise do regime normativo das carreiras, restou constatada que a medida buscou racionalizar o desempenho do papel constitucional da instituição. Demais disso, vislumbrou-se flagrante identidade substancial entre os cargos, verificada a compatibilidade funcional e remuneratória, além da equivalência dos requisitos exigidos em concurso.

A título de arremate, pode-se invocar o princípio da razoabilidade para sustentar que a “demissão” irrestrita dos funcionários públicos, em razão da alteração de natureza jurídica da entidade, implicaria em distorção da regra do concurso público. No mesmo sentido, o Min. Octavio Gallotti, no julgamento da ADI n° 1.591, asseverou que:

  • Julgo que não se deva levar, ao paroxismo, o princípio do concurso público para acesso aos cargos públicos, a ponto de que uma reestruturação convergente de carreiras similares venha a cobrar (em custos e descontinuidade) o preço da extinção de todos os antigos cargos, com a disponibilidade de cada um dos ocupantes seguida da abertura de processo seletivo, ou, então, do aproveitamento dos disponíveis, hipótese esta última que redundaria, na prática, justamente na situação que a propositura da ação visa a conjurar.

 

AUTOR: Felipe Antunes. Sócio do Martins Antunes & Vilela Advogados. Consultor Jurídico em Licitações e Contratos Administrativos. Pós-graduado em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Especialista em Regimes Próprios de Previdência Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

[1] A respeito do tema, veja-se a ADI n° 159-PA e a ADI n° 824.

[2] Edmir Netto de Araújo. Direito Adm. 5°. Ed. Saraiva. 2010. P. 350.

[3] Confira-se a redação do Art. 11 da Lei n° 10.549/02, in verbis:

São transformados em cargos de Advogado da União, da respectiva Carreira da Advocacia-Geral da União, os cargos efetivos, vagos e ocupados, da Carreira de Assistente Jurídico, da Advocacia-Geral da União.

1° São enquadrados na Carreira de Advogado da União os titulares dos cargos efetivos da Carreira de Assistente Jurídico, da Advocacia-Geral da União.

2° O enquadramento de que trata o § 1o deve observar a mesma correlação existente entre as categorias e os níveis das carreiras mencionadas no caput.

3° Para fins de antigüidade na Carreira de Advogado da União, observar-se-á o tempo considerado para antigüidade na extinta Carreira de Assistente Jurídico, da Advocacia-Geral da União.

4° À Advocacia-Geral da União incumbe adotar as providências necessárias para o cumprimento do disposto neste artigo, bem como verificar a regularidade de sua aplicação.

5° O disposto neste artigo não se aplica aos atuais cargos de Assistente Jurídico cuja inclusão em quadro suplementar está prevista no art. 46 da Medida Provisória no 2.229-43, de 6 de setembro de 2001, nem a seus ocupantes”.

Comments are closed.